Como pode alguém fazer relógios de sonho para uns e de pesadelo para outros? Um debate no Horology Forum, organizado pela Dubai Watch Week, lançou uma pertinente discussão sobre a relatividade dos gostos e a volatilidade dos génios – com destaque para a evolução da carreira de Gérald Genta e do design relojoeiro.
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Por Miguel Seabra, em Londres
É uma pergunta que me colocam frequentemente, a de qual é o meu relógio de sonho. Foi também um tema recorrente durante o Horology Forum que a Dubai Watch Week organizou em Londres.
A resposta não é fácil: vêm-me imediatamente à cabeça tantas dúzias de modelos em simultâneo que me é sempre difícil sair do emaranhado de opções. E fico sempre encravado na resposta, pelo que até é bom estar a sistematizar o tema por escrito de modo a ter uma reserva na memória para a próxima vez que for confrontado com tão habitual questão.
O que posso recordar é que o meu primeiro relógio ‘aspiracional’ (esquecendo o Casio com calculadora dos tempos de escola…) era um Ebel Sport Elegance – na altura em que a Ebel estava nos calcanhares da Rolex e marcava uma forte presença no meu mundo do ténis, entre os anos 80 e os anos 90. Depois, quando me comecei a tornar um maior aficionado da relojoaria e também jornalista da especialidade, a meio da década de 90, desejei três modelos em particular: um cronógrafo Zenith Chronomaster El Primero Fases da Lua, um Jaeger-LeCoultre Master Réveil com relógio mecânico e um cronógrafo Girard-Perregaux Vintage 1970.
Nunca cheguei a ter nenhum Ebel, mas acabei por conseguir essa almejada troika…
Claro que, à medida que fui mergulhando mais na relojoaria, mais alargado se tornou o elenco do desejo – com constantes variações e ajustes, tendo em conta as muitas novidades de cada ano e mesmo ligeiras mutações no próprio gosto. E há sempre que estabelecer duas áreas distintas: a dos relógios ‘atingíveis’, que também podem ser designados por ‘aspiracionais’, com um preço que poderá ser carote, mas que não é do outro mundo (mesmo que seja absurdo para a maioria das pessoas fora do âmbito da relojoaria); e a dos relógios ‘de sonho’ (daqueles que só podem ser comprados se estivermos a sonhar ou ganharmos o Euromilhões). Dentro dessas duas áreas de escolha principais também há subdivisões. Porque, além do preço, há a condicionante da acessibilidade – por se tratar eventualmente de um relógio em edição limitada que está esgotada, ou um antigo modelo vintage que atualmente só pode ser adquirido por preços muito elevados em leilões.
Cada qual terá o seu Graal, o tal relógio de sonho. Há quem seja ‘monogâmico’ e tenha desejos muito precisos e sucintos. Não consigo ser assim, porque me vêm imediatamente à cabeça os diversos parâmetros de escolha – a começar pelo formato (redondo, retangular, quadrado ou tonneau?), pelo tipo (desportivo, casual ou elegante? Grande marca ou criador independente?), pela idade (contemporâneo ou vintage?), pela complicação (ou conjugação de complicações) e, claro está, pelo preço… que estabelece a importante fronteira entre o aspiracional e o sonho.
Um pouco abaixo da fronteira dos 50 mil euros, destacaria a versão inaugural do Singer Reimagined Chronograph Track 1. E devo confessar a minha surpresa por ter tido uma paixão inesperada pelo Ralph Lauren American Western Cushion Silver, que normalmente nunca entraria em nenhuma escolha minha. O meu colega Wei Koh, fundador das revistas Revolution e The Rake sentiu o mesmo – e encomendou um. 25 mil euros não é caro… para ele.
Se me for dito que só posso escolher um relógio para levar para uma ilha deserta, talvez a resposta seja rápida e genérica: um Rolex. Provavelmente, escolheria o Daytona ou um dos GMT Master II em aço. Claro que a aquisição desses modelos seria um autêntico pesadelo para o cidadão comum, já que as listas de espera são enormes e o valor inflacionado no mercado paralelo. Escolheria um deles se estivesse confinado a um lugar remoto, porque a Rolex é um Mercedes a dieselcapaz de fazer 300 mil quilómetros por ano sem problemas. Aguentaria tudo e durante muito tempo. Mas não é um Rolls Royce; aí já entramos noutro patamar de preço e no tal domínio do sonho.
Nesse patamar estratosférico, o que poderia eu escolher? Embora seja licenciado em História, deixo de parte os relógios vintage raros e aqueles que tiveram donos famosos – nunca tive esse interesse, até porque esses relógios são normalmente demasiado frágeis para serem usados no dia a dia e excessivamente onerosos no que diz respeito à manutenção… para não falar do preço que pode atingir valores ridículos. Escolheria antes um Datograph Perpetual Chronograph, da Lange & Söhne; ou um Zeitwerk ou Datograph, preferencialmente nas versões Lumen. O Datograph Up & Down Lumen foi mesmo um dos meus relógios preferidos de 2018.
Ou então um Sonnerie Souveraine ou um Centigraphe Souverain do meu amigo François-Paul Journe, de preferência na suas edições boutique (caraterizadas pelo mostrador negro).
Ou o puro Portugieser Minute Repeater da IWC. Ou um cronógrafo com calendário perpétuo 5270 da Patek Philippe, seja ele com mostrador prateado ou salmão. Ou um dos vários exemplares que me fascinam da De Bethune, a marca ‘milenial’ que emocionalmente mais mexe comigo – mais do que outras marcas contemporâneas independentes que também fazem literalmente relógios de sonho (como a Richard Mille, a Urwerk, a MB&F), porque apresentam soluções estéticas visionárias e técnicas mirabolantes saídas da fértil imaginação dos seus fundadores, sem esquecer preços de pesadelo.
Aliás, a De Bethune tem uma linha na sua coleção com a designação de Dream Machine… mas eu contentar-me-ia com o DB25 Starry Varius Chronomètre Tourbillon que recentemente ganhou o prémio ‘Cronometria’ no Grand Prix d’Horlogerie de Genève – e que tem no mostrador aquele azul ‘impossível’ que só a De Bethune consegue.
Horology Forum e a dicotomia Gérald Genta
E é aqui que entra a tal discussão tida em Londres, no mais interessante debate na agenda do Horology Forum que foi organizado pela Dubai Watch Week nas instalações da leiloeira Christie’s, em Londres. Um debate que se centrou na mestria do relojoeiro George Daniels e sobretudo nos ícones que o lendário Gérald Genta lançou na história da relojoaria de pulso.
Gérald Genta – endeusado por muitos no universo relojoeiro – é o mais famoso designer da história da relojoaria e terá sido o primeiro a executar relógios de sonho propriamente ditos. Não apenas no plano técnico (desses sempre houve de encomenda, como o Henry Graves Supercomplication da Patek Philippe), mas sobretudo na associação da técnica com uma estética ousada que revolucionou toda uma era. Marcou definitivamente a década de 70 graças a um punhado de emblemáticos modelos que hoje em dia são relógios de sonho para muita gente…
Sempre tive uma opinião muito forte relativamente a dois aspetos marcantes da carreira de Gérald Genta: o recurso excessivo a um design integrado e couraçado surgido inicialmente no Royal Oak e depois ‘aproveitado’ no Nautilus e em demasiados outros modelos; e a criação de alguns dos relógios mais feios de que me recordo na história da relojoaria de pulso ao mais alto nível, surgidos no final da década de 80 e inícios da década de 90. Muitos deles peças únicas de estética ‘cauchemardesca’ que eram relógios de sonho para alguém endinheirado, como o Sultão do Brunei.
A conclusão a tirar é que muitas vezes a linha entre o brilhantismo e a catástrofe se afigura muito ténue ou de que todos temos sonhos diferentes – e que gostos não se discutem. Mas podem-se educar!