Os relógios dão-nos o tempo. E, quer o guardem, quer o escondam, fazem-nos redescobrir a arte da contemplação, numa era em que tudo parece ser mais rápido do que a velocidade dos ponteiros. Será que ainda é possível conquistar o tempo ou lutar contra ele? Afinal, qual é o tempo útil? Aquele que consumimos sem dar por isso? Ou o que reservamos para olhar, sentir e pensar?

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Por Fernando Sobral

Charlot era um homem pequeno, mas demasiado grande para o mundo real. Sorria sempre que enfrentava uma ameaça, fugia dela e, sobretudo, enganava a morte, esquivando-se das suas ameaças. Por isso, Charlie Chaplin costumava dizer: «O meu único inimigo é o tempo». Foi por isso que, para o apoiar nessa longa batalha, a Suíça o presenteou, em 1953, com um relógio Memovox da Jaeger-LeCoultre. Charlot desafiou as leis do tempo. Desapareceu, mas continua a ser uma memória impossível de esquecer. Sobretudo nestes tempos onde a velocidade ofusca a calma e o tempo necessários à observação e à reflexão. Compreende-se a conexão de Charlot com os relógios: estes guardiões do tempo ajudam-nos a contemplá-lo. Muitos destes modelos, pela sua beleza, fazem-nos esquecer o tempo. Outros, no labirinto dos seus movimentos, propõem-nos questionarmos a magnífica arquitetura que os sustenta e o sonho de quem os criou. Alguns fazem-nos ir em busca do ‘tempo perdido’ de que falava Marcel Proust.

No ano de 1953, quando Charles Chaplin se mudou para a Suíça, a Jaeger-LeCoultre ofereceu-lhe um Memovox que está agora exposto no museu Chaplin’s World, na Suíça. © DR
No ano de 1953, quando Charles Chaplin se mudou para a Suíça, a Jaeger-LeCoultre ofereceu-lhe um Memovox que está agora exposto no museu Chaplin’s World, na Suíça. © DR

Compreende-se a conexão de Charlot com os relógios: estes guardiões do tempo ajudam-nos a contemplá-lo. Muitos destes modelos, pela sua beleza, fazem-nos esquecer o tempo. Outros, no labirinto dos seus movimentos, propõem-nos questionarmos a magnífica arquitetura que os sustenta e o sonho de quem os criou.

Os relógios dão-nos o tempo. Mas, quer o guardem, quer o escondam, fazem-nos redescobrir a arte da contemplação. O tempo, hoje, é o derradeiro luxo. Tentar usufruir dele ou guardá-lo é algo único, já que o tempo nos foge por entre os dedos, como se areia da praia se tratasse.

O tempo engendra pressões e stress. O tempo livre, o das férias e do lazer, é o que seduz o Homem, que aspira aliar a vida profissional à vida privada. Saborear a lentidão é o seu último grande prazer. Voltar a ter tempo para observar e para nos questionarmos sobre o que nos cerca e o que nos motiva é, cada vez mais, algo que parece um reduto de exclusividade. Muitas são as expressões para esta vertigem atual: ‘correr atrás do tempo’, ‘não ter tempo’, ‘faltar tempo’, ‘passar o tempo’, ‘de tempos a tempos’.

O tempo, materializado pelos relógios, é uma constante preocupação do Homem. Utilizamos o tempo, matamos o tempo, ou este liquida-nos. Ao mesmo tempo que é mensurável, é também incompreensível, irreversível e nada podemos fazer contra isto. O tempo está contado, e este contrapõe-se ao tempo desfrutado. Preocupação desde a noite dos tempos, tem hoje uma relação diferente com os homens. São as horas semanais de trabalho, o tempo que falta para a reforma: o Homem gostaria de dominar o tempo. Talvez este seja o seu último luxo. Depois de terem conquistado os caminhos marítimos da Terra, os grandes conquistadores partiram à conquista do Universo e, depois, do Espaço, a última fronteira. Agora, o Homem quer conquistar o tempo.

O tempo, hoje, é o derradeiro luxo. Tentar usufruir dele ou guardá-lo é algo único, já que o tempo nos foge por entre os dedos, como se areia da praia se tratasse.

O Aroma do Tempo: um ensaio fillosófico sobre a arte da demora (Duft der Zeit: Ein philosophischer Essay zur Kunst des Verweilens) é um livro onde o filósofo germano-coreano Byung-Chul Han aborda aquilo que considera ser uma crise temporal. © DR
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Em O Aroma do Tempo, o filósofo Byung-Chul Han conta-nos a história do relógio de incenso que se usou na China até finais do século XIX. Os europeus julgavam que o relógio era um incensário, porque acreditavam que era impossível medir o tempo por meio do incenso. A ideia de o tempo poder adotar a forma de um aroma era algo a que não se conseguiam adaptar. Na lógica chinesa, com um relógio destes, sentia-se melhor o tempo a decorrer. E inspiravam-se esses momentos. O tempo passava a ter aroma. Era um tempo de que se desfrutava. Não é por acaso que Tao Te King diz: «estica um arco até ao seu limite e desejarás não o ter feito.» Quando se estica o tempo, este pode quebrar-nos.


Os gregos utilizavam três designações diferentes para se referirem ao tempo. No caso, três deuses: Chronos, Aion e Kairós. Chronos é o tempo da vida que nos conduz à morte, o elo de ligação entre o nascimento e o fim de todas as coisas. Aion é o responsável pelo tempo que nasce e renasce ciclicamente. Está relacionado com o prazer. Kairós representa o momento certo. É o deus que nos ajuda a intuir o sentido de oportunidade. Cada um vela por uma caraterística do tempo humano.

Na Idade Média, a vida contemplativa gozava ainda de prioridade sobre a vida ativa. O trabalho adquire sentido a partir da contemplação. O dia começa com orações e com estas termina. Só durante a Reforma o trabalho adquire um sentido que excede a satisfação das necessidades pessoais. A preocupação com a salvação transforma o indivíduo em trabalhador. A perda de tempo é o pior dos pecados. Dormir muito é desnecessário. Os comerciantes começam, então, a sua competição com o tempo litúrgico.

Tal como a Igreja medieval, os estados absolutistas da Renascença estavam determinados a deter o monopólio do tempo e a forma mais ameaçadora do tempo – o futuro –, suprimindo as correntes astrológicas e apocalíticas nas populações. Recorde-se que, em 1793, a França revolucionária impôs um sistema decimal, com o dia dividido em dez horas de 100 minutos cada. Durou 12 anos, até Napoleão reinstalar as tradicionais 24 horas, com 60 minutos cada. Dominar o tempo, utilizá-lo a nosso favor, foi uma constante nas civilizações.

Também a guerra e a segurança foram razões primárias para se adotar a estandardização do tempo. Foi o caso específico da Alemanha, nos anos 70 do século XIX, como parte da unificação. No século XVIII, o relógio atinge o seu apogeu, inserido numa cultura científica obcecada com as ideias de ordem e precisão. Newton concebe um sistema planetário, como faria um relojoeiro. O tempo mecânico substitui o tempo da natureza. Com a evolução das civilizações modernas, a busca pelo controlo do tempo refinou-se: a globalização financeira, a partir de metade da década de 80 do século XX, tal como a revolução nas comunicações, gerou ciclos de 24 horas sem paragens. Conquistámos o tempo ou o tempo domesticou-nos à sua vontade?

A Jaquet Droz em 2018 lançou três novas versões do relógio The Loving Butterfly Automaton, sendo uma delas esta versão em ouro vermelho com mostrador meteorito. © Jaquet Droz
A Jaquet Droz em 2018 lançou três novas versões do relógio The Loving Butterfly Automaton, sendo uma delas esta versão em ouro vermelho com mostrador meteorito. © Jaquet Droz

Os relógios foram sempre formas de nos ligarmos ao tempo. De sabermos as horas. Mas também foram sempre peças que nos faziam parar o tempo, criadas para as contemplarmos, para as apreciarmos, para criarmos sonhos. São formas de usufruirmos desse luxo que é o tempo. Hoje, nestes tempos velozes, os relógios mecânicos servem também para usufruirmos do tempo. Quem não se lembra dos históricos Automata de Jaquet-Droz? Estes estão de volta, muito mais pequenos, para trazer um sentido mágico aos novos relógios com joalharia para senhoras. O fascínio por objetos inanimados que, de repente, se movem através de meios complexos e escondidos, apelam a todos nós: gostamos de ver a sua magia. Os relógios Automata, que viveram durante séculos, foram criados por artesãos requintados para clientes individuais, para mostrar uma divertida caraterística mecânica – desde um pássaro a cantar até algo erótico. Costumavam ser para homens, mas hoje não é o caso.

A moda começou de forma sistemática em 2006, com as belas Poetic Complications da Van Cleef & Arpels, que, no primeiro modelo, quis marcar as estações com um relógio que evoluísse lentamente ao longo do ano, um sonho de Bos, o então diretor criativo da marca. Outras histórias incluem o célebre Pont des Amoureux, em que um casal se encontra numa ponte em busca de um à meia-noite, ou o Ronde des Papillons. Que representam todas estas obras de arte? O elogio do tempo e o luxo de termos tempo para as observarmos, tocarmos ou brincarmos com elas. Outras marcas respiram, livres, nestes territórios onde temos de ter tempo para usufruir da beleza: a Cartier, com as suas Panthères, reinventou os relógios de pulso femininos; a Jaquet Droz, com o Lady 8 Flower; a Hermès, com o Le Temps Suspendu; a Jaeger-LeCoultre, com o Rendez-Vous Moon; e Richard Mille, com o Tourbillon Fleur, em que uma magnólia abre regularmente ou a pedido. Ao mesmo tempo que os relógios controlam o tempo, oferecem-nos também a possibilidade de termos minutos e horas para nos hipnotizarmos com a beleza.

Num outro contexto, não podemos esquecer Christophe Claret, com o deslumbrante Angelico, que, recuperando o mundo marítimo do século XVIII, nos faz sentir o prazer de ter tempo para observar uma peça com uma construção extremamente sensível que está defronte dos nossos olhos; ou a magnífica coleção que, ao longo dos anos, a Vacheron Constantin foi fazendo com métiers d’art «Les Masques», recuperando a arte tribal, e outras formas de aprender com o tempo.

Jaeger-LeCoultre Rendez-Vous Moon © Jaeger-LeCoultre
Jaeger-LeCoultre Rendez-Vous Moon © Jaeger-LeCoultre

As memórias são, também, um sinal de que medir o tempo não é algo que seja apenas uma mestria mecânica. É uma forma de usufruir do tempo, de contemplar objetos belos e empolgantes.

Ter um relógio de bolso é um luxo. Quando os relógios de pulso conquistaram os favores do público, julgou-se que as elegantes peças que se guardavam no bolso tinham os dias contados. Puro engano. A sua elegância ultrapassa todas as tempestades. Desde que a Richard Mille trouxe, em 2008, o seu RM 020, um moderno relógio de bolso, uma gruta onde estavam guardados os melhores segredos, voltou a abrir-se. Todos reviram os lendários relógios de bolso de Abraham-Louis Breguet. Afinal, são mais do que guardiões do tempo: contam a história da Europa. E sabemos que sempre existiram marcas, como a Patek Philippe, que nunca abandonaram a produção de relógios de bolso. A elegância sem tempo supera a vertigem das novidades.

Van Cleef & Arpels Lady Arpels Pont des Amoureux Watch @ Van Cleef & Arpels
Van Cleef & Arpels Lady Arpels Pont des Amoureux Watch @ Van Cleef & Arpels

É certo que a nossa relação com o tempo está a mudar. Será uma revolução cultural? O telemóvel avisa-nos, através do GPS, para evitarmos o trânsito por determinado local para que não nos atrasemos, avisa-nos dos compromissos a determinada hora. As novas tecnologias estão a alterar a relação dos Homens com o tempo, criando stress suplementar. Como é que se consegue não estar sempre a ver o e-mail ou a atender o telemóvel?

Viver na urgência tornou-se um facto. Antigamente, o ritmo de tempo era determinado pela natureza ou pelo trabalho. Hoje, o tempo livre, se é a essência da vida, custa a ganhar. Mas o Facebook e o Twitter nunca param. Nem os e-mails. Deixámos de saber esperar.

Hermès Arceau L’Heure de la Lune © Hermès
Hermès Arceau L’Heure de la Lune © Hermès

Não temos tempo. Ou talvez tenhamos medo de termos tempo para viver. Não vivemos na Grécia de Aristóteles e Platão, onde os homens livres não tinham necessidades económicas, dando-lhes liberdade para filosofar e para o debate democrático. Dizia Lamberto Maffei no seu Elogio da Lentidão: «uma sociedade que se põe em competição com a biologia está destinada a perder.» Desprezámos o ciclo da vida, o dia conquistou a noite com a eletricidade, o tempo parece estar à nossa mercê. As horas e os minutos parecem estar sempre numa corrida de 100 metros, tentando serem ainda mais rápidos. O tempo tornou-se, mesmo, um objeto de consumo. Assim sendo, usa-se e consome-se o mais rapidamente possível. Instalou-se a cultura do fazer, em vez da cultura do estar. Na maior parte dos casos, os ocidentais são ricos em produtos, mas pobres em tempo. Enchemos a vida de obrigações e rotinas. Mas, se estivermos completamente preenchidos, não temos espaço para incorporar nada de novo.

Viver na urgência tornou-se um facto. Antigamente, o ritmo de tempo era determinado pela natureza ou pelo trabalho. Hoje, o tempo livre, se é a essência da vida, custa a ganhar.

A pressa é uma doença perigosa. Podemos escolher entre ser ricos em tempo ou em dinheiro. Dessa escolha, dependerá, em parte, o nosso modelo de vida. Afinal, o tempo não se passa – gasta-se. A sorte é que, sendo o tempo o último grande luxo dos homens e das mulheres, pode ser mensurado por relógios que são obras de arte. E que nos obrigam a parar, para que melhor os saibamos apreciar.